quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Jiu Jitsu, natural da Amazônia


A Origem da moderna arte marcial brasileira deve-se à trupe performática do Conde Koma e às atividades circenses dos primeiros Gracie

No primeiro round entre a tradição brasileira e a modernidade oriental, deu capoeira. Em 1909, o japonês Sada Miuako, instrutor de jiu-jitsu trazido pela Marinha, foi fulminado por um rabo de arraia desferido por um capoeirista negro chamado Cyriaco em um combate-exibição no Centro do Rio de Janeiro (reportagem do Jornal O Malho de 15/05/1909). Mas outros rounds viriam, e a nova arte marcial seria assimilada no país, ganhando características próprias. Um século depois, é conhecida no mundo todo como Brazilian Jiu-jitsu.

Os militares da Marinha, ramo mais aristocrático das Forças Armadas, em contato direto com as inovações globais do início do século XX, foram os primeiro entusiastas da prática do jiu-jitsu. A luta representava para eles um método de educação física moderna, instrumento de aperfeiçoamento eugênico da população brasileira, considerada pelos intelectuais da época como racionalmente inferior. Após sua vitória na guerra contra a Rússia em 1905, o Japão tentava quebrar o monopólio dos americanos e europeus como modelos de civilização para o mundo. A elite brasileira começou a admirar o país oriental como exemplo bem-sucedido de superação das tradições rumo à modernidade. Como a capoeira simbolizava um passado incômodo – estava associada à criminalidade e à escravidão – o jiu-jitsu poderia ser o futuro.

Após tentativas esporádicas, quase exclusivamente no âmbito militar, o jiu-jitsu foi introduzido no Brasil através da Amazônia, durante a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918). Chegou com uma trupe de artistas marciais treinados em um no estilo de Jiu-jitsu. Era o judô. Essa maneira diferente de lutar foi desenvolvida pela escola Kodokan, fundada em 1882, em Tóquio, por um jovem educador chamado Jigoro Kano. O criador do Judô fora influenciado pelo novo currículo das universidades japonesas, introduzido durante o processo de modernização local conhecido como Meiji (1868 – 1912). A escola de Kano era baseada em moldes pedagógicos e filosóficos que combinavam as culturas do Oriente e do Ocidente. De forma análoga, seu judô era uma fusão de movimentos de quedas e luta no solo inspiradas nos estilos tradicionais, obedecendo a uma mecânica corpórea. Seu intuito era transformar uma arte marcial de origem medieval em prática esportiva para formar cidadãos modernos.

Os membros da trupe japonesa em excursão pela Amazônia divulgavam sua cultura no Ocidente. Chegaram a Belém no final de 1915. Teatros, bares e circos eram os palcos de sua performances exóticas. O sucesso da trupe nesse final de Belle Époque tropical foi imenso. Aclamados pela imprensa local como “Hércules Nipônicos”, os japoneses desfilavam paramentados em quimonos ao longo das amplas avenidas de Belém, construídas durante o auge da borracha. Ao contrário do ocorrido anos antes no Rio de Janeiro, um dos mestres de judô venceu com facilidade, em Belém, o capoeirista local. Aos olhos da elite cosmopolita foi o triunfo da civilização sobre a barbárie.

O grupo era dirigido por Mitsuyo Mayeda, mais conhecido pelo nome de guerra, Conde Koma, discípulo do criador do Judô, Jigoro Kano, Mayeda deixou o Japão na época da Guerra Russo-Japonesa para divulgar exatamente esse estilo de luta iniciante. Nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina, exibiu-se em espetáculos de luta livre. Na Amazônia, a trupe excursionava pelas capitais da região, apresentando-se em circos locais. Um deles com o nome pomposo de “American Circus”, tinha como sócio Gastão Gracie, membro de uma família aristocrática do Rio de Janeiro, de origem escocesa. As atividades da trupe não se limitavam aos espetáculos: incluíam o ensino de artes marciais em espaços improvisados em Belém e Manaus. Foi assim que os japoneses passaram a divulgar este estilo de jiu-jitsu moderno para jovens da burguesia dessas capitais. Carlos Gracie, filho mais velho de Gastão, foi um dos atraídos pela novidade marcial do Oriente. Ele tinha interesse em esportes de combate em virtude das atividades circenses de seu pai, que incluíam a promoção de espetáculos de luta livre.

O que os alunos brasileiros do Conde Koma não podiam imaginar eram as dificuldades pelas quais passava aquela luta em sua terra natal. Desde o início, o criador do judô, Jigoro Kano, adotara rígidos padrões morais para diferenciar sua escola das artes marciais decadentes, para fazê-la respeitável aos olhos da elite Meiji. Lutas profissionais (pagas) e outras atividades de respeitabilidade duvidosa eram desencorajadas. Em 1909, Kano foi nomeado representante do Comitê Olímpico Internacional para a Ásia. O que endureceu ainda mais sua visão puritana da prática do esporte. Refletindo esta crise, os japoneses envolvidos em lutas profissionais adotaram o termo ”jiu-jitsu” apena um termo genérico para se referir a centenas de estilos de combates corpo a corpo existentes no Japão – para se diferenciar do judô. A estratégia era uma forma de proteger a reputação da escola de Jigoro Kano – já que judô era um dos estilos de jiu-jitsu, era possível praticá-lo profissionalmente sem chamá-lo pelo nome.

O programa ensinado por Conde Koma e seus parceiros na Amazônia refletia esse momento de indefinição: eram técnicas de jiu-jitsu vagamente baseadas nos fundamentos pedagógicos e filosóficos da Kodokan, a escola de Kano. A fragilidade do status de Conde Koma se confirma pelo fato de que nunca concedeu uma faixa preta a discípulos brasileiros. O sistema de promoção em faixas – que se tornaria prática comum em todas as artes marciais – era mais uma inovação de Jigoro kano. Sem alunos graduados ou faixas pretas não haverá possibilidade da transferência integral de conhecimento e perpetuação do judô da tradição Kodokan na Amazônia.

Ao largo dessas nuances japonesas, Carlos Gracie foi treinado por um tempo relativamente curto em técnicas de jiu-jitsu que provavelmente invcorporavam a experiência do Conde Koma em lutas profissionais. Isto fazia dele um praticante de “jiu-jitsu“, e não um discípulo no sentido clássico do judô Kodokan. No começo da década de 1920, Gastão Gracie e sua família se mudaram para o Rio de Janeiro em consequência da penúria financeira e da morte do patriarca Peter (Pedro) McNichols Gracie.

Logo após os Gracie deixarem Belém, Conde Koma iniciou um processo de reabilitação junto à Kodokan. Ele se retirou das lutas profissionais e se tornou o representante de interesses japoneses na Amazônia, responsável, inclusive, pelo assentamento de seus compatriotas na região. O resultado concreto desta mudança foi o recomeço de sua promoção na hierarquia da Kodokan, que estava paralisada havia 17 anos. Em 1935, Conde Koma publicou um manual de judô em português homenageando Jigoro Kano e explicando o uso ambíguo de termos como “judô” e “jiu–jitsu”. O título "Jiudo" assinala a transição do jiu-jitsu para o judô

Enquanto isso, Carlos Gracie abria sua primeira escola de jiu-jitsu no Rio de Janeiro, em setembro de 1930. Perpetuava no Brasil, o nome genérico de uma tradição medieval japonesa. A peculiaridade do aprendizado de Carlos deixou-o livre dos dogmas da Kodokan, abrindo caminho para a aculturação do jiu-jitsu e a criação de um estilo local. Igualmente importante para o futuro do Brazilian jiu-jitsu, a modesta escola de Carlos Gracie se encontrava a poucos quarteirões do centro decisório da capital brasileira. Em novembro de 1930, as tropas gaúchas amarraram seus cavalos no obelisco do centro do Rio de Janeiro , enquanto Getúlio Vargas assumia o poder no Palácio do Catete. O discurso nacionalista da Era Vargas deu suporte fundamental ao processo de invenção de um estilo brasileiro do jiu-jitsu japonês. Além disso, o regime legitimou esta transformação ao adotar o jiu-jitsu como um dos sistemas de defesa pessoal das forças de segurança criadas pelo Estado autoritário na década de 1930. O Brazilian Jiu-jitsu nasce junto com o Brasil Moderno.

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